A importância

Trecho do Livro A arte no Tribunal: uma homenagem aos autores (Pág. 24-41)

Apesar de pouco citado nas últimas décadas, não se pode falar de artes em Pernambuco sem se fazer referência a Antão Bibiano Silva – cujo cinquentenário da morte ocorreu em janeiro de 2019. Nesta obra, o Tribunal de Justiça de Pernambuco registra o reconhecimento ao seu legado e presta uma merecida homenagem a esse grande artista pernambucano, autor das grandiosas esculturas que encimam o Palácio da Justiça de Pernambuco. Bibiano foi uma das figuras que mais colaborou para a construção do ensino superior de arte no Estado, sua vida se confunde com esse capítulo da Educação no Recife. 

Ele integrou o restrito grupo dos idealizadores e fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco (1932), da qual se tornou o primeiro diretor. Depois de reconhecida como entidade de ensino de nível superior (1945), a Escola acabou sendo decisiva para a formação da rede de faculdades que deu origem ao que é, hoje, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

A herança deixada por ele – na arte e no ensino – é inversamente proporcional à precariedade de sua vida na infância humilde e completamente desprovida de amparos educacionais. Aquele menino pobre e aparentemente alheio venceu cada desafio e se tornou um dos escultores mais requisitados de sua época no Recife. Usou o reconhecimento social para tornar a arte em Pernambuco mais sólida e preparada. 

A história da vida do artista começa em 1888, ano da abolição da escravidão no Brasil. O comerciante português José Francisco da Silva se encontrava em Vitória de Santo Antão e caçou a laço uma mocinha nativa – o que, na região rural, não vinha a ser algo tão incomum na época. Ela era da nação indígena Paraguaçu – por isso ele passou a chamá-la Josefa Paraguaçu. Meses depois, no dia 8 de março de 1889, nasceu Antão Bibiano Silva e, em seguida, o irmão dele, José. 

Quando o português sumiu para sempre, sem deixar rastros, Josefa, muito jovem, falando apenas o idioma tupi, passou a criar, sozinha, seus dois filhos, vendendo sal na feira da cidade e prestando serviços domésticos. Até o fim da vida, não conseguiu falar bem o idioma português. Bibiano, sem brinquedos, divertia-se criando formas com barro – que a mãe destruía por vê-las como resultados de um estado de distração permanente do menino. Depois, ele passou a usar também a madeira nas suas criações. 

A justiça e a Família, Cúpula do Palácio da Justiça, PE

 Aos oito anos, Bibiano pediu ao irmão para servirlhe de modelo e fez um Cristo Crucificado que encantou o padre da cidade. Continuou esculpindo e impressionando. Em 1906, aos 17 anos, graças ao apoio de contribuições coletadas por esse padre e com a ajuda do tabelião local, Leobardo Carvalho, passou a residir no Recife para estudar no Liceu de Artes e Ofícios de Pernambuco, possivelmente abrigado em um convento. 

A escola, de nível médio, ensinava ofícios de Desenho, Aritmética e Arquitetura – voltando atenções para formação de artífices para a indústria. O talento e a dedicação de Bibiano fizeram com que um dos seus trabalhos fosse selecionado, em 1908, para exposição no disputado Salão Nacional de Belas Artes, promovido pela Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, então Capital Federal. Ganhou medalha de prata. 

Em 1909, aos vinte anos, passou a cursar a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, uma instituição fundada por Dom João VI, em 1816, como Escola Real de Ciências, Arte e Ofícios, com status de nível superior. Ali, Bibiano elegeu o professor Rodolfo Bernardelli como referência quanto aos rumos de sua carreira. Buscou trilhar os mesmos caminhos do artista mexicano nos estudos, magistério e na produção artística de obras tumulares, monumentos comemorativos e bustos de personalidades.

Em 1912, aos 23 anos, selecionado pela segunda vez para o Salão de Belas Artes, Bibiano Silva apresentou a obra Liberto, um escravo sem amarras. Impressionou pelo conhecimento técnico de proporcionalidade e grande domínio da habilidade de esculpir. Se na música erudita existe o chamado virtuosi – figura de uma habilidade fora do comum no domínio de um instrumento e no conhecimento técnico –, Bibiano era um virtuosi na escultura.

Apesar da concorrência nacional, a seleção de seus trabalhos para o Salão de Belas Artes parecia ter virado rotina em sua vida: novamente foi selecionado para a edição de 1913, sua terceira participação, aos 24 anos – e obteve a menção honrosa.

Nessa época, configurava-se no cenário nacional o movimento modernista, mas Bibiano Silva não tinha arroubos de uma criação autoral: era apaixonado pela beleza das formas humanas e teorias de proporcionalidades. Isso o fez tornar-se um grande admirador de Michelangelo, que sintetizou influências da antiguidade clássica e foi, para sempre, sua grande inspiração artística.

Para aquele Salão de Artes, ele criou o Philotetes. Conseguiu sugerir um paralelo entre ele e esse personagem da mitologia grega, herói na guerra contra Troia, cuja história conduz à reflexão sobre o gerenciamento do sofrimento. Como característica física da figura retratada, uma chaga no pé: semelhante à que Bibiano carregou por toda a vida, na perna, originada por um acidente de bonde.

Cativou a crítica especializada. Em edição de 11 de setembro daquele ano, artigo na página 5 do jornal Correio da manhã, dizia, a respeito de Bibiano:

Busto de Gervásio Pires, Palácio da Justiça PE

Viram todos, no ano passado, aquela figura máscula, toda nervos e músculos de Liberto, com o rosto erguido num gesto de desafio, quebradas as cadeias que o cingiam. O símbolo, por uns achado acima das forças do autor, e por outros taxado obra de gênio, e por todos elogiado, com pequeníssimas restrições, teve a sua significação decifrada agora. Bibiano é um torturado que se recrutava ali em Liberto, quebrando as cadeias que o vinham acorrentado. E ainda mais oprimido pela

injustiça da suspeita terrível, Bibiano tomou a ombros a ingente empreitada de muito mais fazer, sozinho, recluso num vão escuro, e estudou, frequentou os hospitais, leu Sófocles, Lessing, na ânsia de vencer na cruzada de honra.

E saiu Philotetes da retorta predestinada. O que é a obra do moço todos têm visto ali naquele recanto do salão. É um cidadão, vivendo das glórias e lutas da sua pátria, abandonado em região deserta, tendo a pungi-lo a dor cruenta de uma chaga incurável no pé. É uma vítima do mais terrível dos sofrimentos, perene, ininterrupto, cruel que ali se estorce em atitude que só por si tiraria o sono a escultores já consagrados. Mas, Bibiano, venceu também na outra feição da sua obra e o observador diante de Philotetes mede-lhe nas crispações dos músculos, na expressão dolorida, na contorção que todo o envolve e que se faz toda a sua razão de existir, o máximo sofredor da mais cruel das dores imaginadas. 

Que o visitador pare diante do trabalho de Bibiano, estude-o, sinta-o, e certo, como nós, se convencerá de que ele o é de um grande espírito, de um talento de escol, revelado com precocidade, que o torna ainda mais admirável. Os júris das diferentes seções reuniram-se ontem, resolvendo acerca de todos os prêmios, devendo, porém, ser oportunamente sujeitos à aprovação do Conselho Superior.1

1 O SALÃO DE 1913 – São seis candidatos à medalha de prata. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p.5, 11 set. 1913. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?bib=089842_02&pasta=ano 191&pesq=>. Acesso em: 3 jan. 2018.

No Rio de Janeiro, Bibiano fez o de sempre: trabalhou e construiu amizades. Uma delas foi Humberto Cavina, dono da fundição que passou a usar posteriormente

para fundir trabalhos em bronze. Era um dos seus colegas no Salão de Arte de 1913, ganhador da medalha de prata.

As premiações repercutiam em Pernambuco e despertaram o interesse do público pelas obras do artista. Em 1916, ele esculpiu dois bustos de Emídio Dantas Barreto, que acabava de deixar o Governo do Estado. Uma das obras se encontra no início da avenida que leva o nome do ex-governador e outra no Parque 13 de Maio, ambos endereços no Recife. 

Em 1917, ano do Centenário da Revolução Pernambucana de 1817, ele foi escolhido para esculpir o busto de José de Barros Lima, o “Leão Coroado”. O busto foi aposto no Pátio da Estação Central de Vitória de Santo Antão, sua cidade natal – de onde o artista saiu muito pobre e voltou já famoso. O personagem do “Leão Coroado” tornou-se lendário por ter reagido à bala ante voz de prisão, episódio que fez eclodir o movimento revolucionário. Mas acabou condenado à morte por enforcamento e teve mãos e cabeça cortadas, expostas em poste na cidade de Olinda. O resto do seu corpo foi amarrado a um cavalo e arrastado até o cemitério. Mas Bibiano o retratou altivo, mostrando-o como um forte herói grego, independente do sofrimento, como o fez em Philotetes. 

Diante das demandas, aos 28 anos, Bibiano iniciava nova temporada de moradia no Recife e casou-se com

Busto Paula Baptista TJPE
Busto Gervásio Pires TJPE

Lídia Francisca, que conheceu numa procissão. Ela tornouse inspiração para criações dele, apaixonado pela beleza, vivia a olhar traços de todos e não se furtava a elogiar as pessoas que lhes chamavam a atenção, independente de conhecê-las. Bibiano e Lídia fixaram endereço na casa de número 130 da Rua do Lima, Bairro de Santo Amaro, onde nasceu Lectícia Aureliano, filha única do casal. 

Em 1920, ele fez o busto do pintor Telles Júnior, hoje aposto na Praça do Segundo Jardim de Boa Viagem. 

O ano de 1922 foi de muita ebulição na área das Artes no Brasil, com a Semana de Arte Moderna fazendo explodir o movimento modernista que vinha ganhando corpo. O Brasil comemorava 100 anos de Independência. Bibiano foi um dos participantes da Exposição Internacional Centenário da Independência do Brasil, promovida pelo Governo Federal. É considerada até hoje a maior exposição de arte já realizada no Brasil, com três milhões de visitantes. Premiado, ele recebeu um valor em dinheiro que investiu em um ano de estada no Rio de Janeiro. 

Ao regressar ao Recife no ano seguinte, viveu o período mais glamoroso de sua vida. Extremamente requisitado, abriu ateliê próximo ao Teatro do Parque, na Rua do Hospício, número 71, onde também passou a morar. Fez algo diferente e que lhe dava destaque naquela que era a região mais sofisticada do Recife: trabalhava em cômodo resguardado da rua por uma porta de vidro, como numa vitrine, onde transeuntes podiam vê-lo. Usava sua própria figura, seus movimentos e suas esculturas para promover-se junto ao público.

Deu muito certo: diante das belezas que mostrava, os pedidos não paravam de chegar e ele precisou ampliar o ateliê, contratando 

Fotografia do artista Antão Bibiano Silva

funcionários para ajudá-lo e acolhendo aprendizes. Esculpia também em granito e mármore, chegando sua oficina a contabilizar mais de setenta máquinas. O magistério tornou-se a segunda paixão profissional do escultor.

Bibiano era o nome mais lembrando para esculturas tumulares que, aos poucos, foram transformando o Cemitério de Santo Amaro, fundado em 1851, numa grande galeria de arte a céu aberto, com dezenas de obras de sua autoria. Ele seguia firme os passos do mestre mexicano Bernardelli.

Quem entrava no escritório do seu ateliê deparavase com muita sofisticação: cortinas de veludo vermelho e música erudita ecoando dos vinis minuciosamente catalogados. Para descontrair, ele sacava seu violino, dando um toque final àquela atmosfera de Belle Époque na qual escolheu viver para sempre. Com o tempo, o violino foi deixado de lado: comprometia a sensibilidade das pontas de seus dedos, prioritariamente dedicados à arte da escultura.

Charmoso, com cabelos fartos, lisos e escuros, pele morena jambo, traços herdados da mãe paraguaçu, Bibiano tinha uma alma liberta, sem limites para desfrutar dos prazeres da vida. Permitiu-se inclusive momentos de encantos por algumas beldades que lhe serviram como modelos vivos, desfrutados nos cenários da boemia recifense e carioca.

Essa foi uma questão com a qual sua esposa optou por conviver pacificamente, dando preferência a ignorar informações que lhe chegavam. A irmandade entre os dois era inquebrável. Até porque, nas horas que ele passava em casa, a forma como tratava familiares, sempre atencioso e afetuoso, compensava, para seus entes, o tempo em que vivia suas outras facetas – como profissional e boêmio.

Pela manhã, levava um longo tempo a eleger o terno que usaria, entre sempre três opções postadas em cima da cama pela esposa. Enquanto decidia, ouvia Beethoven, dançava sozinho e tomava uísque. As horas do relógio eram para ele apenas um detalhe que não interferia quanto a fazer ou não o que tinha vontade.

Depois do terno, vinha a escolha da gravata, do colarinho suposto, das abotoaduras… Ele era elegante, gostava de comprar pessoalmente os tecidos a serem levados para o alfaiate. Fazia assim também com os vestidos de Lídia – geralmente em sedas, adquiridas a comerciantes turcos, em domicílio. A estética estava em tudo.

Numa época em que a cozinha era um ambiente da casa associado às mulheres, ele chegava nas madrugadas carregado de iguarias, punha-se à beira do fogão, preparando receitas elaboradas. Costumava, quando os pratos saíam do forno, acordar todos em casa para o jantar – que poderia ser chamado de café da manhã, pelo adiantado da hora.

A cada venda que fazia, comprava o que queria saborear naquele momento: indo de acepipes importados a noites de boemia. Pensava quase que tão somente no presente – o que levou a família a vivenciar diferentes momentos em termos de estabilidade financeira.

No caminhar da década de 1920, passada a Primeira Guerra Mundial, o momento era de ruptura com o que estava estabelecido até então: o mundo se reinventava. A discussão de padrões estabelecidos atingia, em cheio, a arte – mais remota forma de comunicação. Depois da Semana de Arte Moderna em 1922, o movimento modernista tomava conta do ambiente.

No Brasil, o novo surgia na música de Heitor VillaLobos, reunindo o erudito e o popular. Na literatura, até então ininteligível aos menos letrados, aparecia Carlos Drummond de Andrade, com seus versos curtos, simples e na linguagem das ruas: “No meio do caminho tinha uma pedra…”.

Embora permanecesse fiel ao estilo clássico, Bibiano entrosou-se nas discussões acerca da arte. Em pauta, a arte acima do ofício mecânico: como profissão que exigia formação acadêmica – o que, se não era uma novidade no Rio de Janeiro, era no Recife. Como ex-aluno da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, em nível superior, ele sabia o que a orientação acadêmica significava para lapidar dotes. Assim, entendeu que surgia

A justiça e o homem, Cúpula do Palácio da Justiça, PE

uma área a mais para os profissionais da arte – e, diante do crescente número de aprendizes em seu ateliê, já estava arrebatado pelo magistério.

Em 1923, aos 34 anos, Bibiano Silva participou de mais um Salão de Belas Artes no Rio de Janeiro. Expôs o original em gesso patinado do Monumento Comemorativo ao Centenário, feito para o Estado do Rio Grande do Norte.

Veio o ano de 1924 e o governador de Pernambuco, Sérgio Loreto, decidiu construir a sede da Justiça Estadual. O projeto aprovado foi assinado pelo grego Giácomo Palumbo, ex-aluno da Escola Nacional de Belas Artes de Paris, que tinha grande intercâmbio com a Escola Nacional de Belas Artes – formadora de Bibiano. O arquiteto, que passou a morar no Rio de Janeiro em 1918, era contemporâneo do escultor pernambucano, com quem participava dos debates sobre as artes que animavam os cafés cariocas.

Esse entrosamento refletiu no projeto do Palácio: aos traços da arquitetura eclética da fachada se juntou o classicismo do escultor pernambucano mais premiado nacionalmente naquele momento. Um gran finale, coroando a beleza da obra arquitetônica.

Bibiano concebeu para o prédio o conjunto Justiça e lei, composto por dois grandes grupos de esculturas – A justiça e o homem e A justiça e a família. Ambas grandiosas, cada uma com três metros de altura por quase três de largura – para serem vistas à distância. Marcam a base do que é a cúpula mais alta do País até os dias de hoje – terminada a 45 metros do chão, altura equivalente a um prédio de quinze andares.

Além dos dois grupos de esculturas externas, Bibiano Silva criou, também para o Palácio da Justiça, bustos de Francisco de Paula Baptista e Gervásio Pires, apostos no Salão dos Passos Perdidos, principal entrada da edificação.

A obra adquirida pelo Governo do Estado para o Poder Judiciário pareceu cair-lhe como um lastro decisivo para sua arte. No ano seguinte, além de esculturas tumulares, produziu um conjunto de bustos para a Faculdade de Direito do Recife, que homenagearam personagens importantes do Direito.

Foram retratados José Feliciano Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo – idealizador das faculdades de Direito de São Paulo e Olinda, as primeiras do Brasil – e os juristas Aprígio Magalhães, Tobias Barreto e Francisco de Paula Baptista.

A ponte aérea Recife-Rio de Janeiro-Recife era uma constante na vida do escultor. Em alguns momentos era usada para acompanhar trabalhos que estavam sendo finalizados na Fundição Cavina; em outros, para a troca temporária de endereço. Ainda em 1925, ele novamente estava nessa ponte, mais uma vez selecionado para o Salão Nacional de Belas Artes, ganhou medalha de bronze com a obra Retrato. Voltou a ser citado pela crítica como destaque entre os escultores.

Enquanto isso, ele trabalhava nas esculturas do Palácio da Justiça. O projeto do edifício reuniu amigos, como o alemão Heinrich Moser, com grandiosos vitrais, e que iria ser um companheiro do escultor em outras

jornadas, assim como o próprio Palumbo, igualmente estrangeiro. Ambos juntaram-se a outros amigos contemporâneos de Bibiano para engrossar a corrente que criou no Recife muito mais do que obras de arte: uma verdadeira congregação de artistas em torno de ideais.

Em 1927, entusiasmado pelos acontecimentos no mundo, ele concebeu algo diferente de tudo o que já havia feito: retratou um hidroavião – o Jahú. Tratava-se do primeiro a cruzar o Atlântico Sul, sem escalas – em abril daquele ano. Uma parada do hidroavião em Recife fez a cidade aplaudir o piloto paulista João Ribeiro de Barros e, Bibiano, ao acompanhar as autoridades no desembarque nas águas do Porto do Recife, levou sua filha, Lectícia, que entregou uma rosa ao paulista aventureiro. A escultura era sua homenagem à façanha. A obra Netuno, na qual o Rei das Águas – sempre um grego – enviava uma onda, amparando a nave, depois foi aposta no Largo da Encruzilhada.

Naquele ano, a Comunidade Portuguesa em Pernambuco havia presenteado o Recife com monumento aos aviadores portugueses Gago Coutinho e Scandura Cabral. A dupla fez a primeira travessia do Atlântico Sul, com escalas, a bordo do hidroavião Lusitânia, em 1922 – no contexto das comemorações do Centenário da Independência do Brasil. Desembarcou no Porto do Recife, próximo ao local onde o monumento foi aposto, na Praça Dezessete, no Bairro de São José. Com sua escultura, Bibiano havia encontrado um jeito da proeza do aviador brasileiro ficar também registrada na cidade.

Ao fim daquela década de 1920, extremamente prestigiado, Bibiano Silva resolveu usar seu trânsito junto a autoridades para tentar viabilizar um sonho que vinha nutrindo em parceria com o arquiteto Jayme Oliveira: uma escola de belas artes em Pernambuco. Não era uma novidade. Em 1888, o arquiteto Herculano Ramos havia tentado fundar no Recife algo semelhante à Escola Nacional de Belas Artes. Depois, o pintor Telles Júnior insistiu na ideia.

O papel do Liceu de Artes e Ofícios de Pernambuco havia sido decisivo na vida de Bibiano. Mas queria-se algo específico para as artes, no nível de ensino superior, que levasse para o ambiente profissional também a pintura e a escultura, como a Escola Nacional de Belas Artes.

Em 1930, o governador Estácio de Sá inaugurou o Palácio da Justiça, às pressas, diante do galope da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas assumiu o comando da nação, depôs governadores e nomeou interventores estaduais. Estavam inauguradas as obras mais grandiosas da cidade em termos de esculturas. A visibilidade de Bibiano, não só por conta do local em que elas ficavam expostas, mas por ele ter sido escolhido pelo Judiciário, fez aumentar o prestígio do escultor.

Ele usou isso também em prol do projeto da escola. Em 1931, o governo Vargas lançou o Decreto n. 19.852, que organizava o ensino artístico, técnico e profissional. Entre as novidades trazidas com a norma, a criação da Caixa de Subvenção, voltada para o ensino técnico: era o cimento que calçaria o início do caminho da escola que Bibiano e Jayme queriam em Pernambuco.

Cúpula do Palácio da Justiça

Essa instituição iniciaria as atividades como entidade de nível médio, mas trilharia um destino de nível superior. Com essa possibilidade, Bibiano recorreu a gabinetes de autoridades com a proposta. De acordo com Anna Cecília Jácome, neta do escultor, ele nunca se envolveu com políticas partidárias, mas sempre conquistou parceria de administradores públicos em seus pleitos.

Em março de 1932, Bibiano Silva e Jayme de Oliveira fizeram uma visita ao ateliê dividido por Mário Nunes, Álvaro Amorim e Baltazar da Câmara. Anos depois, esse encontro seria registrado em artigo publicado por Câmara, no Jornal do Commercio do dia 18 de dezembro de 19492 . O texto diz que Jayme de Oliveira chegou informando: “Nossa visita é mais interessante que festa. Vimo-nos

reunir-nos a vocês para que melhor possamos trabalhar pela criação da Escola de Belas Artes de Pernambuco”. Das conversas, um trecho de Bibiano:

Meus grandes amigos e irmãos em arte e espírito, vamos construir o sagrado templo das Belas Artes […] Nossos arquitetos projetarão esse templo que será majestoso e sublime, harmonizando, num feliz conjunto, as cinco ordens das arquiteturas grega e romana […].

De acordo com o autor, eram três horas da madrugada quando Bibiano encerrou sua fala. Sua paixão pela mitologia grega o fazia perder a noção do tempo quando começava a falar do assunto. Embora sem uma religiosidade arraigada, era apaixonado também por histórias sobre divindades católicas. Para nunca errar ao retratá-las em suas esculturas, sabia minúcias inclusive sobre vestimentas de época.

Enfim, a dupla queria a participação do trio do ateliê para fortalecer a proposta de criação da escola. Todos concordaram e ainda disponibilizaram a casa, na Rua Joaquim Távora, 105, no Bairro da Encruzilhada, para as reuniões. Aos poucos, o grupo foi crescendo: vieram os pintores Murillo La Greca, Fédora do Rêgo Monteiro (ou Fédora Fernandes – única mulher no grupo) e o arquiteto Heitor Maia Filho. Também chegaram o professor João Alfredo e os bacharéis em Direito Barreto Campelo e Luiz Cedro, simpatizantes das artes, para auxiliar juridicamente o grupo.

Mais e mais artistas e simpatizantes foram se agregando ao projeto, a exemplo do jornalista Mário Melo, dos pintores Henrique Elliot e Emilio Franzoni e do escritor Gilberto Freyre.

Em assembleia, no dia 29 de março de 1932, naquele ateliê, o grupo de amigos finalmente fundou a Escola de Belas Artes de Pernambuco e elegeu Bibiano Silva seu primeiro diretor. Mas, como diria a letra de Vinícius de Moraes, “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”, ou seja, tratava-se apenas da criação formal.

Por isso, naquele instante, o grupo também criou o Comitê Pró-Escola de Belas Artes de Pernambuco. A ideia inicial de Bibiano de construir a sede foi abandonada diante dos custos. Em julho eles alugaram o imóvel que deu corpo ao sonho: o chamado “Solar dos Amorim”, na Rua Benfica, n. 150, no Bairro da Madalena.

O prédio, grande, construído em meados da década de 1880, demandava um custo de aluguel muito alto. Além desse desafio, havia o de equipar a escola. Isso foi feito com muita abnegação de cada um, a partir de doações de móveis de suas próprias casas e com o minguado dinheiro de seus bolsos, por amor à arte. 

A inauguração foi em 22 de agosto de 1932 e em dezembro ela já estava reconhecida como entidade de utilidade pública pelo Governo de Pernambuco, obtendo apoio do Estado e da Prefeitura. O corpo

2 TORRES, niedja ferreira dos santos. O ensino do desenho na Escola de Belas Artes de Pernambuco: 1932 a 1946. 2015. 150 f. dissertação (mestrado em artes visuais) – universidade federal de pernambuco em parceria com a universidade federal da paraíba, recife, 2015. disponível em: <http://www.repositorio.ufpe.br/ handle/123456789/16272?show=full>. acesso em: 8 nov. 2017. docente da escola

docente da Escola de Belas Artes de Pernambuco – Ebap, na sua fundação, era composto pelo escultor Bibiano Silva (diretor); os pintores Mário Nunes, Balthazar da Câmara (tesoureiro), Álvaro Amorim, Fédora Monteiro Fernandes, Avelino Pereira, Murillo La Greca, Henrique Elliot e Heinrich Moser; Emílio Franzoni, como gravador; os professores Frei Mathias Teves, Maestro Manoel Augusto; os bacharéis em Direito Adalberto Marroquim, José Maria de Albuquerque Mello, Luís Cedro, Barreto Campelo e Gervásio Fioravantti; os médicos João Alfredo e Geraldo de Andrade; os engenheiros civis Domingos Ferreira, Jayme Lima Brandão, Newton Maia, Nestor Moreira Reis, Carlos Simon, Manoel Caetano Filho e Joel Galvão e os arquitetos Luís Matheus Ferreira, Giácomo Palumbo, Nelson Nevares, Heitor Maia Filho, Georges Munier, Abelardo Gama e Jayme Oliveira (secretário).

Nas artes, essa fase foi marcada pelo regionalismo de Cícero Dias e o modernismo de Vicente do Rego Monteiro (irmão de Fédora Monteiro). Um grupo de artistas do Recife criou o chamado “Grupo dos Independentes” e realizou o 1º Salão Independente de Artes, inspirado no Salons Indépendants de Paris. Alguns dos que ajudaram a fundar a Ebap, a exemplo de Balthazar da Câmara e Mário Nunes, foram expositores do Salão Independente. Embora um pouco ausente, devido às questões da Ebap, Bibiano disponibilizava seu elegante ateliê para reuniões do Grupo. A Escola de Belas Artes não era bem vista por todo o grupo, sendo apontada por alguns como uma reação à Arte Moderna – que ganhava adeptos na cidade desde a década anterior.

Bibiano, naquele ano, participou de mais um Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Porém, estava cada vez mais empenhado nos assuntos da Escola: manter os dois segmentos de cursos – Arquitetura e Belas Artes (Pintura, Escultura e Gravura) – era uma tarefa árdua.

Por isso, em 1935, ele desligou-se da direção da Ebap e voltou ao Rio de Janeiro para tentar viabilizar a federalização da entidade, disposto a só retornar com algum encaminhamento. Enquanto isso, os negócios do seu ateliê na Rua do Hospício ficaram à mingua. Dívidas trabalhistas e de aluguel causaram a penhora dos bens do estabelecimento, que teve as atividades encerradas.

Parte da mobília foi leiloada para a quitação das pendências e outra parte foi para a Escola de Belas Artes. Bibiano estava disposto a não arredar pé do Rio de Janeiro antes de alguma conquista. A filha e a esposa passaram a morar na casa do amigo arquiteto Jayme Oliveira. No fim do ano, as duas juntaram-se a ele na Capital Federal. Em 1936, todos retornaram ao Recife, mesmo sem a federalização.

Naquele ano, houve a segunda edição do Salão dos Independentes e, depois dela, cada artista foi seguindo seu rumo, com o grupo se dispersando. Das ebulições culturais,

destacou-se no Recife o primeiro jardim ecológico do Brasil, criado por Burle Marx. Em 1937, o casarão onde funcionava a Escola foi adquirido pelo Estado e cedido à instituição, o que deixou Bibiano um pouco mais tranquilo. Sem ateliê, ele precisava retomar sua carreira de escultor e deixar que outros também se empenhassem pela escola.

Em 1938, todos voltaram a morar no Rio de Janeiro, onde ele passou a lecionar na Escola Secundária Técnica Profissional de Bento Ribeiro. Bibiano estava tão bem conceituado na Capital Federal, na época, que foi escolhido para modelar o busto do então presidente Getúlio Vargas, que posou para ele3 . A obra está à mostra no Palácio do Catete.

Em 1939, a Escola de Belas Artes de Pernambuco já era conhecida nacionalmente e seus dirigentes continuavam na tentativa de federalizá-la. Bibiano, prestigiado no Rio de Janeiro, onde continuava morando, uniu-se a outros artistas na luta junto aos órgãos federais e conseguiram agregar nomes nacionais da arte ao pleito: Cândido Portinari, Rodolpho Amoedo, Eliseu Visconti e Modesto Kanto, entre outros.

Veio a Segunda Grande Guerra Mundial, tempo de um grande desabastecimento também no Brasil. O escultor pernambucano Vamberto Jácome (autor do busto de Mário Melo, na Avenida Mário Melo, entre outros

3 RODRIGUES, Nise de Souza. O grupo dos independentes: arte moderna no Recife – 1930. Recife: Editora da Aurora, 2008, p. 72.

monumentos) preocupava-se com a situação de Bibiano no Rio de Janeiro. Então pediu ao irmão, Syndolpho, integrante do Exército na Capital Federal, que procurasse o amigo para lhe dar alguma assistência: os dois acabaram se tornando genro e sogro.

O casamento de Lectícia e Syndolpho foi em 1941 e da união nasceram três netos para Bibiano e Lídia, todos no Rio de Janeiro. Com o irmão, José, seguindo carreira na Marinha, o escultor acabou levando sua mãe também para a Capital Federal. A casa era uma verdadeira comunidade, com várias gerações convivendo sob o mesmo teto.

Em 14 de novembro de 1945, o Decreto n. 19.903, do Governo Vargas, reconheceu o curso de Belas Artes (Pintura, Escultura e Gravura) da Ebap como de nível superior. Houve a reestruturação da área da Educação e, assim, no ano seguinte a Ebap compôs um grupo de entidades de ensino superior que se juntou para tornar possível a criação da Universidade do Recife, pelo Decreto Lei n. 9.388, de 20 de junho de 1946. Era a federalização tão sonhada. Esta rede reuniu as faculdades de Direito (fundada em 1827), Medicina (fundada em 1915), e Filosofia (Fafire/1940), como também as antigas “escolas” de Engenharia (1895), Farmácia (1903), Odontologia (1913) e Belas Artes (1932).

Com seus cursos de Desenho e Escultura, a Escola de Belas Artes de Pernambuco garantiu o preenchimento de cursos da área de Ciências Humanas. Era requisito

Um grande mestre da escultura

Fernando Lúcio (*)

A trajetória dos grandes artistas é algo que desperta certa curiosidade, existe uma identidade na sua obra e também uma identidade na forma como o próprio artista chega ao seu patamar de vitória. Falando de escultores, faço questão de citar exemplos como Miguel Ângelo, Lorenzo Bernini, August Rodin e outros. Entre esses outros posso relatar centenas, todos com a sua peculiar modalidade de desenvolvimento técnico e artístico.

Grande mestre da escultura, o pernambucano Bibiano Silva deixou provas de um talento excepcional em esculturas e monumentos de bronze, e uma marca na Historia da Arte de Pernambuco, ao participar da fundação da Escola Pernambucana de Belas Artes, fechada pela ditadura militar sem explicação lógica.

Vejo na obra de Bibiano o toque ardente de uma personalidade forte. Como todos os grandes artistas, ele teve contatos com mestres que o levaram ao caminho da evolução técnica. Bibiano tinha uma grande fascinação por Miguel Ângelo. E podemos ver um pouco disto nas suas colossais esculturas no teto do Palácio da Justiça de Pernambuco, estruturas de ferro, cimento e pedra de gigantes figuras que são vistas a grande distancia, com olhares firmes, como na face do David de Miguel Angelo, em Florença.

Escola Pernambucana de Belas Artes

Início — Bibiano Silva iniciou a sua trajetória escultórica quase como autodidata. Mantinha contatos com muitos escultores, entre eles, o escultor Rodolpho Bemacielli, um mestre da Escultura Brasileira, nascido em Guadalajara, no México, e naturalizado brasileiro, que ficou à frente da Escola Nacional de Belas Artes por vários anos. Os dois tinham grande afinidade e trocavam muitas idéias.

Bibiano Silva aglutinava em suas obras, tanto as formas matematicamente perfeitas dos cânones florentinos, como a suavidade e as solturas das camadas pouco retocadas de August Rodin. Os monumentos criados por Bibiano Silva estão em muitos locais do Brasil, pois ele não media distancias para a sua fascinante elaboração, que nascia em pouca quantidade de argila, ia crescendo indefinidamente, até chegar ao conceito fundamental da forma.

Escultura O Jaú: Rio de Janeiro

Conheci um dos seus ajudantes, o Sr. Severino, a quem Bibiano devia o refinado amassamento do barro que iria passar por suas mãos, até a construção das formas. Esse senhor falava da intensidade de Bibiano Silva ante uma escultura em que trabalhava. Eu costumava interrogá-lo para sentir como era a forma de o mestre trabalhar. Ele, humildemente, dizia: “ele era calmo, alegre, sabia onde estava tudo que precisava para o seu trabalho, mas quando a escultura tomava volume, a responsabilidade o transformava”. Disse que Bibiano passava horas sem parar, dedicado ao trabalho, como se fosse responsável pela vida de uma pessoa, que era a sua obra.

Tumulares — Bibiano Silva trabalhou largamente em esculturas tumulares, muitas, ainda, não catalogadas. A maior parte, em mausoléus, está no Cemitério de Santo Amaro, no Recife. Embora pertencentes a variadas famílias, poderiam se catalogadas e se constituírem num grande acervo para um museu.

Poucos escultores no Brasil produziram como o mestre Bibiano Silva. Ele poderia estar sendo venerado pela sua capacidade de criação. Talvez tenha feito mais esculturas do que Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ou mais que o Bemadelli. Infelizmente, o Brasil vem passando por uma desmotivação histórica tremenda, em que obras e mais obras de grandes artistas estão sendo colocadas nos armários dos museus. Hoje o sentido da grande arte se perdeu, a riqueza dos talentos brasileiros está por trás de uma cortina globalizada que já está mofada e, sem sombras de dúvida, vai ficar mais e mais opaca, enquanto as autoridades não a abrirem para que o povo veja a historia artística que há por trás dela.

Aleijadinho, ou mais que o Bemadelli. Infelizmente, o Brasil vem passando por uma desmotivação histórica tremenda, em que obras e mais obras de grandes artistas estão sendo colocadas nos armários dos museus. Hoje o sentido da grande arte se perdeu, a riqueza dos talentos brasileiros está por trás de uma cortina globalizada que já está mofada e, sem sombras de dúvida, vai ficar mais e mais opaca, enquanto as autoridades não a abrirem para que o povo veja a historia artística que há por trás dela.

Grandeza — Bibiano Silva, grande escultor, aquele que em outras épocas poderia até ser chamado de Rodin Brasileiro, foi um técnico e criador de força fenomenal. Ajudou à criação da grande Escola de Belas Artes de Recife e lutou para que ela fosse reconhecida. Fez um busto do presidente Getúlio Vargas, que lhe tinha o maior respeito. Fez monumentos em todo Brasil e não representava, apenas, um pequeno espaço das artes em nossa terra, mas um portal para os nossos grandes mestres da arte.

Considero Bibiano Silva um valor intenso da escultura brasileira, que deve ser mais conhecido, reconhecido e presente nos livros de artes brasileiros. Devemos abrir os braços e os olhos para esta historia ainda não conhecida, olhos do amor pela grande arte e pela historia da verdade.

(*) Artista plástico e professor da Universidade Federal de Pernambuco

Busto de Getúlio Vargas:
Palácio do Catete RJ